As notícias envolvendo suspeitas de irregularidades na execução de convênios pelas organizações não governamentais (ONGs), tanto na área federal como nas esferas estadual e municipal, colocam em primeiro plano o debate sobre as relações dessas entidades com o Estado e a função que elas devem desempenhar na sociedade.
O tradicional papel de assistência à população e defesa de interesses sociais está em xeque, quando a idoneidade das organizações civis passa a ser questionada por suspeitas de má utilização das verbas públicas que lhes são confiadas.
A situação reclama novas regras, que tragam mais clareza sobre o terceiro setor e permitam aperfeiçoar o controle de sua atuação. Enquanto novas diretrizes legais não são aprovadas, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julga os casos que lhe são apresentados de acordo com a legislação vigente e a Constituição.
Um olhar sobre a jurisprudência da Corte mostra como vêm sendo tratados casos de corrupção, isenção de impostos, responsabilidade civil e penal envolvendo essas instituições.
Fundações e associações
De acordo com o atual Código Civil, a fundação é uma pessoa jurídica de direito privado. Para criar uma fundação, o seu instituidor fará, por escritura pública ou testamento, dotação especial de bens livres, especificando o fim a que se destina de forma permanente. “A fundação somente poderá constituir-se para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência” (CC, artigo 62). O patrimônio, portanto, é a exigência primordial para a criação do estatuto de uma fundação. As fundações podem ser constituídas por indivíduos, empresas ou pelo poder público.
As associações, por sua vez, também são pessoas públicas de direito privado. O Código Civil (artigo 53) define a entidade como a união de pessoas que se organizam para fins não econômicos. Todavia, não há vedação legal ao desempenho de atividades econômicas pela associação, desde que as mesmas caracterizem-se como meios para atendimento de seus fins.
A Constituição garante o direito à livre associação, salvo algumas exceções. A finalidade da associação, diferentemente do que ocorre com a fundação, pode ser alterada. A existência de patrimônio também não é exigida quando da criação de uma associação.
O Ministério Público é o órgão que acompanha as atividades das fundações e associações. No entanto, o controle das fundações é mais rígido, existindo, inclusive, a obrigação anual de remessa de relatórios contábeis e operacionais.
Na sequência, algumas decisões do STJ envolvendo essas entidades.
Má-fé contra idosos
A Fundação Assistencial e Seguridade Social dos Empregados da Companhia Energética do Rio Grande do Norte (Fasern) recebeu multa por agir de má-fé ao contestar, em ação rescisória, direitos reconhecidos aos idosos desde 1994. A decisão é da Segunda Seção, em julgado de outubro deste ano.
Os ministros entenderam que a fundação tentou induzi-los a erro, obstar o andamento processual e adiar injustificadamente a realização dos direitos de complementação de aposentadoria dos idosos. “Tentar postergar, injustificadamente, a realização do direito de pessoas nessas condições é, para além de reprovável do ponto de vista jurídico, especialmente reprovável do ponto de vista moral”, afirmou a ministra Nancy Andrighi, relatora do processo.
A Fasern foi condenada em multa de 1% sobre o valor da causa, além de perder o depósito de 5% exigido para dar início à ação rescisória. Os honorários da rescisória foram fixados em R$ 50 mil. O benefício questionado pela fundação corresponde a, pelo menos, R$ 923 mil em valores de 2006 – mas há divergência das partes sobre esse montante.
A relatora apontou que a Fasern tentou questionar fatos reconhecidos como incontroversos na ação original, para induzir os ministros da Segunda Seção a erro. “O manejo de ação rescisória sem a demonstração da pacificação da jurisprudência do Tribunal Superior em sentido contrário ao do julgamento e, mais, na hipótese em que a jurisprudência caminhou no mesmo sentido do acórdão recorrido, com distorção de situações de fato, é medida de má-fé”, fixou a ministra.
Escândalo
Em fevereiro deste ano, o ministro Hamilton Carvalhido (já aposentado) negou seguimento a recurso da Fundação de Apoio à Tecnologia e Ciência (Fateciens, antiga Fatec), do Rio Grande do Sul, que pretendia reverter a indisponibilidade de seus bens, decretada em razão de provável envolvimento no escândalo do Departamento de Trânsito (Detran) gaúcho.
De acordo com as investigações – que levaram à abertura de processos contra várias autoridades estaduais, entre elas a ex-governadora Yeda Crusius –, cerca de R$ 44 milhões em recursos públicos teriam sido desviados em fraudes nos contratos entre o Detran e duas fundações ligadas à Universidade Federal de Santa Maria. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), sediado em Porto Alegre, determinou a indisponibilidade dos bens móveis e imóveis da Fateciens, inclusive de suas contas bancárias.
“As fundações foram utilizadas como veículo para a prática das supostas irregularidades, e, embora não haja prova de que tenham auferido vantagens financeiras, ficou evidenciado que foram utilizadas como meio para repassar vantagens indevidas a empresas privadas e pessoas físicas”, afirmou a decisão do tribunal regional.
O relator do recurso, ministro Hamilton Carvalhido, negou seguimento ao apelo porque a decisão do TRF4 não discutiu os dispositivos supostamente violados. Além disso, o ministro considerou que nem todos os fundamentos da decisão do TRF4 foram questionados, o que seria indispensável para o julgamento do recurso.
Morte de menor
A Primeira Turma do STJ manteve a condenação, em caráter definitivo, da antiga Febem-SP por morte de interno. A Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Fundação Casa) – antiga Fundação do Bem-Estar do Menor (Febem) de São Paulo – havia sido condenada a pagar indenização por danos morais à mãe de um interno que morreu vítima de queimaduras graves quando cumpria medida socioeducativa na instituição. A decisão do STJ rejeitou os argumentos expostos em agravo regimental apresentado pela fundação. A instituição pretendia reverter a obrigação de indenizar.
Em setembro de 2003, a fundação e a Fazenda foram condenadas, em primeira instância, a pagar danos morais, fixados em 100 salários mínimos. Ambas recorreram, tendo o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) excluído a Fazenda do processo, por ilegitimidade passiva, isto é, não ser parte para figurar na ação.
Por maioria, no entanto, o TJSP acolheu os argumentos apresentados em um recurso da mãe da vítima e aumentou a condenação para R$ 150 mil em indenização por danos morais. O TJSP fundamentou a decisão na teoria da responsabilidade objetiva, na vertente do risco integral.
Insatisfeita, a fundação pretendia o exame do caso pelo STJ. No entanto, a subida do recurso especial ao Tribunal foi negada, por falta de cópia do acórdão. A fundação interpôs agravo regimental, alegando que a cópia foi colocada no processo, mas poderia ter sido extraviada.
A Primeira Turma, porém, salientou que a formação do agravo de instrumento previsto no artigo 544 do Código de Processo Civil atende a regras de formalismo processual, as quais não podem ser flexibilizadas pelo relator do recurso, sob pena de violação do devido processo legal.
Cobrança indevida
Uma associação pode cobrar mensalidades de quem não é associado? Para o ministro Luis Felipe Salomão, não. O magistrado atribuiu efeito suspensivo ao recurso especial interposto por um morador da cidade de São Paulo contra a Sociedade Amigos do Jardim das Vertentes (Sajav), para que a execução promovida contra ele não tenha prosseguimento.
O morador alegou que foi injustamente condenado ao pagamento de mensalidades à associação, à qual nunca se associou ou manifestou interesse de se associar. Afirmou que em ação civil pública, proposta pelo Ministério Público contra a Sajav, foi concedida liminar para suspender a cobrança dos valores dos não associados e, em desobediência à decisão, a associação promoveu a execução provisória.
Ainda segundo o morador, em 20 de setembro de 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela ilegalidade das cobranças realizadas por associação de moradores contra os não associados, tendo sido reconhecida a repercussão geral da matéria constitucional.
Para o ministro Salomão, a decisão proferida pelo STF, afirmando a ilegalidade da cobrança e o reconhecimento da repercussão geral da matéria, demonstram a verossimilhança do direito alegado. Já o perigo da demora encontra-se caracterizado pelo fundado temor de que o morador venha a sofrer dano grave e de difícil reparação, com a execução de valores que, ao fim, venham a ser tidos como indevidos.
Apae
A Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) goza de credibilidade perante a população. Entretanto, há mais de uma centena de processos envolvendo a entidade em tramitação no STJ. Um deles, julgado em 2009, debateu a competência da Justiça Estadual para julgar o inquérito policial em que se apuram maus tratos em internos da associação em São João Del Rei (MG). A Terceira Seção do STJ determinou que a competência é do juízo de Direito da 1ª Vara Criminal de São João Del Rei (MG).
De acordo com o Ministério Público, consta do relatório policial que os internos da Casa Lar, mantida pela Apae, teriam sofrido agressões físicas praticadas por duas funcionárias da instituição.
O conflito de competência julgado no STJ foi encaminhado pelo juízo da Vara Criminal, que declinou de sua competência ao fundamento de que o delito em questão (intitulado no inquérito policial como maus tratos) é infração penal de menor potencial ofensivo.
Ao decidir, o relator, ministro Napoleão Nunes Maia Filho, destacou que, para configurar o delito de maus tratos, é necessária a demonstração de que os castigos infligidos tenham por fim a educação, o ensino, o tratamento ou a custódia do sujeito passivo, circunstâncias que não se evidenciam no caso.
O ministro ressaltou, ainda, que a conduta verificada nos autos encontra a melhor adequação típica na Lei 9.455/97, que define os crimes de tortura. Para ele, isso não exclui a possibilidade de outra definição para o fato verificado, depois de uma análise mais profunda das provas.
Desvio de verbas
O ministro Og Fernandes, da Sexta Turma do STJ, negou liminar em habeas corpus que pretendia a suspensão da ação penal que apura supostas irregularidades no Centro Integrado de Apoio Profissional (Ciap), associação civil do Paraná suspeita de servir como fachada para o desvio de verbas públicas. O escândalo envolvendo o Ciap estourou em 2010, após investigações realizadas pela Polícia Federal, Controladoria-Geral da União, Ministério Público Federal e Receita Federal.
Com o indeferimento da liminar, a ação penal pôde continuar tramitando normalmente.
O Ciap era uma organização não governamental qualificada como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), o que lhe permitia receber verbas do governo mediante termos de parceria para a execução de atividades de caráter social.
De acordo com informações divulgadas pelos investigadores na época da operação policial, a entidade teria recebido cerca de R$ 1 bilhão nos cinco anos anteriores, e o dinheiro desviado poderia chegar a R$ 300 milhões. Ainda segundo a polícia, os valores suspeitos eram transferidos para empresas pertencentes a parentes e outras pessoas ligadas aos dirigentes da entidade. A decisão é de julho deste ano.
As ONGs e a filantropia
O conceito terceiro setor engloba os entes que estão situados entre o setor estatal (primeiro setor) e o empresarial (segundo setor). As entidades do terceiro setor são privadas e não almejam entre seus objetivos sociais o lucro.
Uma ONG, organização do terceiro setor, é um agrupamento de pessoas estruturado sob a forma de instituição da sociedade civil que se declara sem fins lucrativos, tendo como missão lutar por causas coletivas ou dar suporte às mesmas. É uma importante evolução da sociedade em nome da cidadania, mas também pode abrigar grupos de lobby interessados em lançar mãos de verbas públicas para fins nem sempre lícitos.
As entidades filantrópicas são sociedades sem fins lucrativos (associações ou fundações), criadas com o propósito de produzir o bem – por exemplo, assistir à família, à maternidade, à infância, à adolescência, à velhice etc.
Para ser reconhecida como filantrópica pelos órgãos públicos, a entidade precisa comprovar ter desenvolvido, pelo período de três anos, no mínimo, atividades em prol da população carente, sem distribuir lucros e sem remunerar seus dirigentes.
De posse de documentos como a Declaração de Utilidade Pública (federal, estadual ou municipal) e a de Entidade Beneficente de Assistência Social, adquirida no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), as entidades filantrópicas podem gozar de certos incentivos fiscais oferecidos pela Constituição, como também pelas legislações tributária e previdenciária.
Muitas fundações, templos de qualquer culto, partidos políticos, entidades sindicais, associações culturais, de proteção à saúde e instituições de ensino são entidades filantrópicas.
Resumidamente, uma ONG – organização, entidade ou instituição da sociedade civil – é sempre, em termos jurídicos, uma associação ou uma fundação. A escolha fica a critério de quem a cria. Porém, inexistindo bens para a dotação de patrimônio inicial, não é possível instituir uma fundação.
É por isso que pequenas e médias ONGs, grupos de apoio e pesquisa, comunitários etc. são, em geral, constituídos como associações. Já entidades financiadoras, grandes instituições educacionais, grupos fomentadores de projetos e pesquisas são, em geral, organizados como fundações.
Em seguida, alguns julgados de destaque envolvendo ONGs e entidades filantrópicas no STJ.
Sigilo quebrado
Em janeiro deste ano, a Sexta Turma do STJ manteve a quebra de sigilo de ONG acusada de envolvimento no desvio de verbas da Previdência. O STJ entendeu que a quebra do sigilo bancário e fiscal de uma pessoa jurídica é legal quando existem indícios suficientes de envolvimento da instituição em esquema de desvio de verbas públicas.
Com a decisão, ficou mantido o acórdão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) que determinou a quebra dos sigilos bancário e fiscal da organização não governamental Núcleo de Cidadania e Ação social – Nucas, com sede no Rio de Janeiro.
De acordo com a investigação requisitada pelo Ministério Público Federal à Polícia Federal, os institutos e as organizações sem fins lucrativos supostamente envolvidos no esquema, entre eles a Nucas, teriam sido contratados para prestar serviços, como terceirizados, em áreas estratégicas do governo fluminense, como saúde e segurança.
Dispensadas da obrigação de fazer licitação, com o possível objetivo de desviar recursos públicos, essas entidades subcontratavam empresas administradas pelos seus próprios diretores, seus familiares ou pessoas que figuravam apenas nominalmente em seus contratos sociais (“laranjas”), encobrindo assim os verdadeiros beneficiários dos recursos que eram repassados pelo governo estadual.
Segundo as informações processuais, somente o Nucas teria movimentado mais de R$ 32 milhões no período de setembro de 2005 a fevereiro de 2006, indicando a possibilidade de transferência financeira atípica para empresas e pessoas físicas.
O Nucas recorreu ao STJ alegando ser a Justiça Federal incompetente para processar o pedido de quebra de sigilos fiscal e bancário em um caso de apuração de desvio de verbas estaduais. A defesa também argumentou que não ficou suficientemente demonstrada a necessidade jurídica para a quebra dos sigilos do Nucas.
No entanto, a relatora do processo, ministra Maria Thereza de Assis Moura, não acolheu os argumentos da entidade: “Em virtude dos dados até então coligidos aos autos, entendo que não há como afastar a competência da Justiça Federal, pois o inquérito e a ação penal cautelar foram iniciados com o objetivo de apurar a prática de crimes praticados em detrimento de bens, serviços ou interesses da União Federal.”
“Importante destacar – continuou a relatora – que, mesmo não se constatando a utilização de recursos federais, a investigação foi deflagrada para a apuração de crimes de sonegação fiscal e de falsidade no preenchimento de cadastros da Receita Federal e da Previdência Social. Assim, tem-se fixada a competência da Justiça Federal, a qual atrai o julgamento dos delitos conexos de competência federal e estadual, conforme determina a Súmula 122 do STJ.”
Relações perigosas
O STJ vai apurar o o envolvimento do governador do Distrito Federal, Agnelo Queiroz, em desvios de verbas federais. A Corte Especial já autorizou o acesso da imprensa a partes do inquérito que investiga a suposta participação do governador no desvio de dinheiro do Programa Segundo Tempo, do Ministério do Esporte, do qual era titular. As partes do inquérito que contêm dados fiscais, bancários e telefônicos permanecem em sigilo e o caso continua em segredo de justiça.
O convênio investigado foi celebrado em 2005 com a Federação Brasiliense de Kung-Fu (Febrak), quando Agnelo Queiroz era o ministro do Esporte. O dirigente da entidade é o policial militar João Dias Ferreira. Segundo os autos, o convênio não foi cumprido e o desvio de recursos públicos foi de R$ 3,16 milhões.
O relatório final do inquérito policial contra João Dias Ferreira concluiu que teria ocorrido a participação de Agnelo Queiroz no esquema, quando era ministro, e que ele teria recebido R$ 256 mil reais em espécie. Como ele foi eleito governador do Distrito Federal, o caso foi remetido ao STJ, que tem competência para processar e julgar governadores de estado nas infrações penais comuns. O inquérito encontra-se em análise no MPF.
Manoel Mattos
Um caso interessante envolvendo ONGs foi decidido pelo STJ em 2010: as organizações não governamentais Justiça Global e Dignitatis – Assessoria Jurídica Popular foram admitidas no papel de amicus curiae no incidente de deslocamento de competência que pede a federalização do caso Manoel Mattos. A decisão é da ministra Laurita Vaz, relatora do processo.
A função do amicus curiae é chamar a atenção da Corte para fatos ou circunstâncias sobre o caso. Seu papel é ampliar a discussão antes do julgamento (que, neste caso, será na Terceira Seção). O incidente de deslocamento de competência entrou na pauta do órgão no final de junho do ano passado, mas o julgamento foi adiado.
A intenção das ONGs era exercer o papel de assistente no processo. A ministra Laurita Vaz entendeu não ser pertinente esse tipo de atuação no incidente, mas concordou que as entidades têm sido agentes provocadores dos organismos responsáveis por garantir os direitos humanos. Daí sua importância como amicus curiae.
A Procuradoria-Geral da República quer deslocar da Justiça estadual para a federal a competência para julgar os processos que tratam da atuação de pistoleiros e de grupo de extermínio nos estados da Paraíba e Pernambuco (seriam mais de 200 execuções). Entre os homicídios praticados pelo grupo, consta o do advogado Manoel Bezerra Mattos, então vereador de Itambé (PE), autor de denúncias sobre as ações criminosas. A morte ocorreu em janeiro de 2009.
Será a segunda vez que o STJ analisará pedido de deslocamento de competência, possibilidade criada pela Emenda Constitucional 45 (reforma do Judiciário), para hipóteses de grave violação de direitos humanos. O IDC 1 tratou do caso da missionária Dorothy Stang, assassinada no Pará, em 2005. O pedido de deslocamento foi negado pelo STJ.
Isenção fiscal
A Primeira Turma decidiu, de forma unânime, que o Ministério Público tem legitimidade para atuar em defesa do patrimônio público lesado por renúncia fiscal inconstitucional. O recurso foi interposto pela Associação Prudentina de Educação e Cultura (Apec), entidade filantrópica, contra decisão do Tribunal Regional Federal da 3° Região (TRF3), para decretar a extinção da ação por ausência de interesse e legitimidade ativa do Ministério Público.
O Ministério Público Federal impetrou ação civil pública para que fosse declarada a nulidade, com efeitos retroativos, do registro e do certificado de entidade filantrópica concedidos à Apec, e para que houvesse, também, a adaptação do estatuto da entidade para fazer constar a finalidade lucrativa.
O certificado conferiu à entidade isenção de impostos e contribuições sociais que, segundo o MPF, foram utilizados com o intuito de distribuição de lucros, inclusive com o financiamento e a promoção pessoal e política de alguns de seus associados, o que gerou a ocorrência de grave lesão aos cofres públicos.
O ministro Hamilton Carvalhido, em seu voto, entendeu que estava claro o desvio de finalidade por parte da Apec. O dinheiro decorrente da isenção tributária deveria ter sido investido em prol da educação e não para financiar a promoção pessoal e política de seus sócios, configurando, assim, a agressão à moralidade administrativa. Segundo o ministro, a emissão indevida do certificado pode afetar o interesse social como um todo.
O relator ressaltou que o objeto da ação ultrapassa o interesse patrimonial e econômico da administração pública, atingindo o próprio interesse social que entidades filantrópicas visam promover. Já em relação à suspensão da imunidade tributária, o ministro entendeu que não houve esgotamento do objeto da ação, pois o que se pretendia era a nulidade do ato administrativo, bem como o reconhecimento de ofensa à moralidade administrativa.
Santas Casas
As Santas Casas, tradicionais entidades filantrópicas espalhadas pelo Brasil, são parte em diversos processos no STJ. Em 2009, o Tribunal manteve decisão que havia condenado a Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro a pagar indenização por danos morais e materiais por cremar o corpo de um homem sem autorização dos familiares.
O Tribunal da Cidadania rejeitou tentativa da defesa de reavaliar a condenação imposta pelo Tribunal de Justiça do estado, no valor de 250 salários mínimos para cônjuge e filho do falecido. O relator foi o ministro Luis Felipe Salomão e a decisão da Quarta Turma foi unânime.
O corpo havia sido sepultado em março de 1995, no cemitério do Realengo, na cidade do Rio, em jazigo alugado por três anos. Em setembro de 1998, sob alegação de descumprimento contratual, a Santa Casa, responsável pela manutenção do cemitério, ordenou a exumação e cremação dos restos mortais. Os familiares ingressaram na Justiça, com o argumento de não ter havido autorização para o ato.
A Santa Casa do Rio também foi responsabilizada civilmente num processo de indenização por erro médico. O julgamento de 2002 aconteceu na Quarta Turma e os ministros entenderam que, apesar de ser hospital filantrópico, sem fins lucrativos, a instituição responde solidariamente pelo fato de seu médico não informar a paciente sobre os riscos cirúrgicos, dos quais resultou a perda total da visão.
O entendimento unânime da Quarta Turma manteve decisão do Judiciário do Rio de Janeiro que condenou a Santa Casa a responder solidariamente pela falta de informação de seu médico. Acometida de glaucoma, M.J.S.V. procurou um neurologista, que recomendou uma neurocirurgia com outro médico. Após a cirurgia, ela sofreu perda total da visão, o que a levou a acreditar que teria sido vítima de erro médico.
O juiz de primeiro grau considerou haver responsabilidade civil comum, pois, apesar de não ter ocorrido qualquer erro no procedimento cirúrgico, o médico e o hospital não teriam refutado a alegação da paciente de que não teria sido informada dos riscos. O hospital apelou, mas a decisão foi mantida pelo TJRJ, levando-o a recorrer ao STJ.
O relator do processo, o ministro hoje aposentado Ruy Rosado, entendeu que o recurso não poderia ser analisado pelo tribunal. Além disso, o fato de a Santa Casa ser uma entidade filantrópica não a isenta da responsabilidade de atender ao dever de informar e de responsabilizar-se pela falta cometida pelo seu médico, que deixou de informar sobre as possíveis consequências da cirurgia.
Justiça gratuita
Em 2007, a Quarta Turma ratificou um entendimento já pacificado no STJ, segundo o qual pessoas jurídicas que não objetivam lucro, como as filantrópicas, sindicatos ou de assistência social, podem requerer assistência judiciária gratuita sem precisar comprovar hipossuficiência.
Cabe à parte contrária comprovar que a entidade não faz jus ao benefício, também podendo o juiz exigir provas antes da concessão. Seguindo a orientação, os ministros reformaram a decisão da segunda instância mineira, que havia negado a assistência gratuita à Fundação Educacional Lucas Machado (Feluma).
No STJ, a Corte Especial definiu esse posicionamento em 2003 e, a partir daí, seus outros órgãos julgadores seguiram a mesma interpretação. Ocorre que o precedente não foi seguido pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) ao analisar pedido de assistência judiciária gratuita da Feluma. A instituição congrega o Hospital Universitário São José, o ambulatório Affonso Silviano Brandão, o plano de saúde Ciências Médicas Saúde (Cimed) e a Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais.
A Quarta Turma do STJ, baseada em voto do relator, ministro Fernando Gonçalves (aposentado), alinhou a solução da causa à orientação da Corte Especial, segundo a qual o procedimento para concessão de assistência gratuita a pessoa jurídica que não objetiva lucro segue o mesmo padrão adotado para as pessoas físicas (inversão do ônus da prova).
“Opera em favor da entidade beneficente a presunção de miserabilidade, cabendo, pois à parte adversa provar o contrário”, explicou o relator.
Outra decisão de destaque sobre entidades filantrópicas foi tomada pela Segunda Turma do STJ. Em 2005, os ministros daquele órgão colegiado entenderam, negando recurso da Sociedade Pestalozzi do Estado do Rio de Janeiro e da Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, que a isenção tributária de entidades filantrópicas não abrange ICMS de energia e telefone.
A imunidade tributária assegurada na Constituição às entidades filantrópicas e sem fins lucrativos não alcança o método de formação de preços de serviços que lhes sejam prestados por terceiros, como no caso das concessionárias de serviços públicos de fornecimento de energia elétrica e de telefonia.
Por sua vez, o artigo 14 do Código Tributário Nacional (CTN) regulamenta o dispositivo, listando os requisitos para que a entidade seja considerada filantrópica e sem fins lucrativos. As entidades ingressaram com mandado de segurança para garantir a imunidade sobre o ICMS arrecadado pelo Estado do Rio de Janeiro, mas tiveram o pedido negado pela 16ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ).
O relator do recurso no STJ, ministro João Otávio de Noronha, ressaltou que, em mandado de segurança, é impossível verificar a qualidade filantrópica das entidades para averiguar o direito invocado. Além disso, a imunidade não alcança a formação de preços na prestação de serviços que sejam prestados às entidades por terceiros. Esse entendimento foi seguido de forma unânime pelos demais membros da Segunda Turma.
REsp 1210608
Ag 1224666
REsp 1097050
CC 102833
HC 110704
REsp 500182
RMS 25696
REsp 1101808
REsp 994397
RMS 19671
REsp 467878