A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou provimento ao recurso especial dos irmãos de Aida Curi – vítima de homicídio que ocorreu no ano de 1958, no Rio de Janeiro – contra a Globo Comunicações e Participações. Para a maioria dos ministros, a divulgação da foto da vítima em programa de televisão, sem consentimento da família, não configurou abalo moral indenizável.
“Em matéria de responsabilidade civil, a violação de direitos encontra-se na seara da ilicitude, cuja existência não dispensa também a ocorrência de dano, com nexo causal, para chegar-se, finalmente, ao dever de indenizar”, afirmou o ministro Luis Felipe Salomão, relator do recurso especial.
Os irmãos da vítima moveram ação contra a emissora com objetivo de receber indenização por danos morais, materiais e à imagem. O que os motivou a buscar o Judiciário foi a exibição de um episódio do programa Linha Direta Justiça sobre a história do crime, após mais de cinquenta anos do ocorrido, com uso de imagem real da vítima ensanguentada.
De acordo com o advogado dos irmãos Curi, Roberto Algranti, o caso foi um dos mais rumorosos da imprensa nacional e perseguiu os autores “como predicado inafastável de seu sobrenome” durante muitos anos. Para os autores, a exploração do caso de Aida Curi, depois de tantos anos, foi ilícita, já que a TV Globo não teve a permissão da família para usar a imagem da vítima. Além disso, consideraram que a audiência e publicidade do programa sobre a tragédia familiar trouxe enriquecimento ilícito à emissora.
O juízo de primeiro grau julgou os pedidos improcedentes e a sentença foi mantida pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ). “Os fatos expostos no programa eram do conhecimento público e, no passado, foram amplamente divulgados pela imprensa. A ré cumpriu com sua função social de informar, alertar e abrir o debate sobre o controvertido caso”, afirmou o acórdão.
Dignidade humana x liberdade de expressão
No recurso especial, os irmãos invocaram um instituto nunca analisado pelo STJ: o direito ao esquecimento. “A sociedade deve respeitar essa reserva mental. O objetivo final de todo o ordenamento jurídico é a proteção à dignidade humana, que é o início e o escopo do próprio estado democrático de direito”, declarou Roberto Algranti perante os ministros.
O advogado da TV Globo, José Perdiz, também apresentou sustentação oral e defendeu o direito à liberdade de expressão: “É o direito constitucional, é o direito amparado na matéria infraconstitucional, de se criar, produzir, informar, levar à sociedade aquilo que tem anseio e deve conhecer”. O advogado defendeu que, ao contrário do alegado pelos autores de que a exibição teve apenas pretextos comerciais, “o programa é estritamente um documentário jornalístico”.
O ministro Luis Felipe Salomão, relator do recurso, afirmou que embora a matéria aborde aspectos constitucionais isso não prejudica o conhecimento do recurso especial para análise das questões infraconstitucionais, porque houve recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal. E citou precedente, segundo o qual, “não é possível a interpretação das normas infraconstitucionais de costas para a Constituição” (REsp 1.183.378).
De acordo com Salomão, o conflito presente no caso entre a liberdade de informação e de expressão e os direitos inerentes à personalidade desafia o julgador a solucioná-lo a partir de nova realidade social, “ancorada na informação massificada que, diariamente, choca-se com a invocação de novos direitos, todos eles resultantes da proteção constitucional conferida à dignidade da pessoa humana”.
Censura
Para Salomão, ao proclamar a liberdade de informação e de manifestação do pensamento, a Constituição Federal traçou as diretrizes principiológicas que devem orientar o exercício dessa liberdade. Segundo ele, isso quer dizer que os direitos e garantias protegidos pela Constituição, em regra, não são absolutos.
Além disso, o relator mencionou que o fato de a informação livre de censura ter sido inserida no seleto grupo dos direitos fundamentais mostra a “vocação antropocêntrica” da Constituição no momento em que instituiu a dignidade da pessoa humana como – mais que um direito – um fundamento da República, “uma lente pela qual devem ser interpretados os demais direitos posteriores”.
Por outro lado, o relator destacou o interesse público que há por trás de notícias criminais. “Um crime, como qualquer fato social, pode entrar para os arquivos da história de uma sociedade e deve ser lembrado por gerações futuras por inúmeras razões”.
Ele comentou que a recordação de crimes passados pode significar uma análise de como a sociedade – e o próprio ser humano – evolui ou regride, especialmente no que diz respeito aos valores éticos e humanitários.
Direito ao esquecimento
O relator ressaltou que a demanda poderia ser subdividida em duas: a primeira relativa à indenização pela lembrança das dores passadas e a segunda relacionada ao uso comercial da imagem da falecida.
Segundo Salomão, a tese do direito ao esquecimento, levantada pelos autores, ganha força na doutrina brasileira e estrangeira. Inclusive, recentemente foi aprovado o Enunciado 531 na VI Jornada de Direito Civil, segundo o qual, “a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”.
Ele explicou que, em princípio, assim como os condenados que cumpriram pena e os absolvidos que se envolveram em processo-crime, as vítimas de crimes e seus familiares têm direito ao esquecimento – se assim desejarem –, consistente em não se submeterem a desnecessárias lembranças de fatos passados que lhes causaram inesquecíveis feridas.
“Caso contrário, chegar-se-ia à antipática e desumana solução de reconhecer esse direito ao ofensor e retirar-lhe dos ofendidos, permitido que os canais de informação se enriqueçam mediante a indefinida exploração das desgraças privadas pelas quais passaram”, comentou.
Contudo, quanto ao caso específico, o ministro entendeu que “o acolhimento do direito ao esquecimento, com a consequente indenização, consubstancia desproporcional corte à liberdade de imprensa, se comparado ao desconforto gerado pela lembrança”. Isso porque a reportagem foi ao ar cinquenta anos após o acontecimento. E, além disso, “se tornaria impraticável a atividade da imprensa para o desiderato de retratar o caso Aida Curi, sem Aida Curi”.
Uso comercial
De acordo com a Súmula 403 do STJ, “independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais”. “A imagem da pessoa, além de constituir um patrimônio autônomo do indivíduo, ostenta um duplo aspecto, um moral e outro patrimonial”, afirmou Luis Felipe Salomão.
Ele explicou que o valor moral da imagem é vulnerado quando ela é utilizada de forma degradante e desrespeitosa, ao passo que o patrimonial é ofendido quando ocorre a exploração comercial direta da imagem sem consentimento. “Daí porque, havendo utilização para fins econômicos ou comerciais (segundo aspecto), dispensa-se a prova do dano (primeiro aspecto)”, mencionou.
Segundo o ministro, isso quer dizer que nem toda veiculação inconsentida da imagem é indevida ou digna de reparação, “mostrando-se frequentes os casos em que a imagem da pessoa é publicada de forma respeitosa e sem nenhum viés comercial ou econômico”.
Salomão analisou vários precedentes do STJ e entendeu que quando a imagem não é, em si, o cerne da publicação, e também não revela uma situação vexatória ou degradante, não há dever de indenizar. “Diferentemente de uma biografia não autorizada, em que se persegue a vida privada do retratado, o cerne do programa foi mesmo o crime em si, e não a vítima ou sua imagem”.
A Turma, por maioria, negou provimento ao recurso dos irmãos Curi. Ficaram vencidos os ministros Isabel Gallotti e Marco Buzzi.